Trio piano, violino e violoncelo

14.11 – 20h

casa da música sônia cabral
R. São Gonçalo – Centro, Vitória – ES

Trio piano, violino e violoncelo

Abertura
Willian Lizardo, piano

G. Ligeti
Musica Ricercata I
J. S. Bach
Sinfonia (Invenção a 3 vozes) em mi maior
Villa-Lobos
Ciranda nº 15, Que lindos olhos ela tem

 


 

Trio de piano, violino e violoncelo

Willian Lizardo, piano
Jacqueline Lima, violino
Christian Munawek, violoncelo

Lili Boulanger
D’un soir triste
D’un matin de printemps 

Haydn
Piano Trio No. 44 in E major, Hob. XV/28  

Jorge Grossman
La nuit éveille les phosphorescences

 


 

A ampliação do conceito de escuta é uma demanda que se agudizou a partir do século XX, com obras que convocam um corpo-ouvinte mais livre, revestido, integralmente, de sua capacidade perceptiva. As obras do concerto de hoje focalizam a experiência da sinestesia, e a abertura, com Ligeti, Bach e Villa-Lobos, nos convida a perceber, para além de melodias, harmonias e ritmos, outras dimensões presentes na multissensorialidade da audição, preparando-nos para usufruir dos diálogos timbrístico-sinestésicos que se constroem entre Boulanger, Haydn e Grossmann.

Nascida em Paris, em 1893, Lili Boulanger desenvolveu uma intensa carreira como compositora e, em sua breve vida, compôs peças para piano, música de câmara, canções, ópera e coro. Aos 19 anos, foi a primeira mulher a ganhar o Prix de Rome, a mais importante distinção daquele tempo para compositores.

Lili foi seduzida pela poesia simbolista francesa de Baudelaire e Verlaine, na qual a ideia de relação entre o homem e a natureza é mediada por correspondências simbólicas, e as peças apresentadas hoje são, nesse sentido, emblemáticas. 

Longe da ideia de descrever eventos da natureza, sua poética sugere uma correspondência entre distintos estados de espírito quando estes habitam a noite e a primavera e, embora contrastantes, essas duas peças são complementares, pois compartilham o mesmo material temático, apresentado em Noite pelo violoncelo e, em Manhã, pelo violino, e articulam-se em 3 grandes seções. 

Em Noite, o andamento lento favorece a criação de um clima noturno e de abandono, em que as identidades apenas se delineiam. O piano tem um ostinato de acordes com harmonias vagas, sobre o qual as cordas dialogam em imitações e fragmentações do motivo principal. Na seção central, há o direcionamento para uma sonoridade mais plena e vigorosa que, após chegar a seu ápice, volta para o clima inicial. Anunciadas pelo piano que, em uma região muito grave, evoca o toque de sinos fúnebres, as sombras da noite nos conduzem ao silêncio.

Em Manhã, o vigor rítmico dado ao motivo principal em andamento vivo, o ostinato rápido do piano e os timbres agudos dos 3 instrumentos são os responsáveis por sugerir a luminosidade de um alvorecer primaveril. Incialmente, a ideia temática se move entre as cordas e, na seção intermediária, recebe um tratamento mais melódico, com texturas contrapontísticas. No retorno da seção leve e saltitante, mais variações nos levam a um final cuja energia parece celebrar a vida que renasce. 

Aclamado como “pai” dos gêneros Sinfonia e Quarteto clássicos, Haydn escreveu este Trio entre 1794 e 1795. Ainda que sua função como Diretor de Música da Corte da família Esterházy o obrigasse à criação semanal de obras, Haydn teve uma capacidade de reinvenção de padrões composicionais tradicionais ímpar. O notável trabalho timbrístico e textural deste Trio é um exemplo dessa sua engenhosidade. 

Um gesto de humor é ouvido nos compassos iniciais do 1º Movimento, quando o piano, em staccato, e as cordas, em pizzicato, emulam um bandolim ao apresentar o tema principal. Sem abandonar os padrões clássicos de desenvolvimento, Haydn estabelece um diálogo timbrístico contrastante entre passagens em legato e em staccato, oferecendo-nos a chance de perceber essas articulações não apenas como efeitos acessórios às alturas e durações, mas como parâmetros constituintes das ideias musicais.

No 2º Movimento, uma “resposta” timbrística e textural aparece: um uníssono funde os 3 instrumentos, expondo a austera melodia que será o ostinato de uma passacaglia. Um jogo contrastante é estabelecido entre esse ostinato, que se apresenta como um walking bass, e uma melodia galante, com ornamentos e motivos pontuados. Confiado ao piano, inicialmente, o diálogo entre essas duas ideias musicais evolui em diferentes alianças sonoras e, ao final, uma “brincadeira” timbrístico-textural nos faz imaginar o sorriso de Haydn. 

A seção inicial do 3º Movimento faz as vezes de Refrão de um Rondó e apresenta as cordas dobrando as linhas do piano, como se fossem uma ampliação de seu timbre. Em episódios que desenvolvem os elementos do Refrão, combinações diferenciadas entre os 3 instrumentos trazem variedade e dinamismo ao discurso e a “libertação” do violino vem em uma seção de caráter mais sério e tempestuoso, em que violoncelo e piano se unem para sustentar seu voo solístico.

Com uma poética marcada pela sensibilidade latino-americana, Grossmann nasceu em Lima e, após ter vivido em São Paulo por 10 anos, transferiu-se para os EUA, onde hoje é professor de composição no Ithaca College (NY). 

Esta peça, composta em 2021, foi estreada em 2023, no festival Valencia International Performing Arts. Inspirada na novela Pântanos, (1895) de André Gide, suas sonoridades reverberam o seguinte parágrafo:

Às vezes, na superfície das águas estagnadas, espalha-se uma iridescência maravilhosa, e as borboletas mais belas não têm nada semelhante em suas asas; a película que lá se forma é feita de matérias decompondo-se. Sobre os lagos, a noite desperta fosforescências, e os fogos dos pântanos que se erguem parecem aquelas mesmas sublimadas.

Seus quatro breves Movimentos nos propõem a contemplação da beleza do ínfimo: tal como em um pântano, em que a vida parece estar suspensa e imóvel para o olhar/ouvir contemporâneo apressado, minúsculas movimentações de energia ocorrem incessantemente. 

Pressentidas pelo título da peça, as sonoridades evocam cores, densidades, texturas, pesos e estados físicos da água (gotas, chapiscos, borrifos, vapores ou placidez de superfície). Explorações de regiões timbrísticas, às vezes extremadas, de acordes em diferentes graus de compactação e de abertura, de efeitos tais como staccati, notas sustentadas, col legno, trêmolos e harmônicos, entre outros, provocam sensações de espacialidade e de profundidade que envolvem nosso corpo para que ele se integre – e se dissolva – à natureza de um pântano. 

No 1º Movimento, após uma breve introdução, o piano constrói um cânone a 3 vozes com diferentes métricas, configurando-se como uma camada contínua e fluida. Sobre ela, as cordas intervêm com gestos em intensidades, tamanhos e expressões contrastante e, ao final, os papéis são trocados: as cordas assumem o cânone, e o piano adere aos gestos mais livres.

Com um caráter leve, à maneira de um scherzo, o 2º Movimento traz uma sonoridade brincalhona e fugidia, realizada, majoritariamente na região aguda dos 3 instrumentos. Linhas se cruzam em diferentes direções, com o contraste de pizzicati e col legno nas cordas, e de staccati e reverberações do pedal do piano.

Dois momentos de caráter contrastante se alternam no 3º Movimento. A seção inicial é enérgica e obsessiva com eventos em intensidade forte e percussiva, e a seção seguinte é seu oposto, com sonoridades “líquidas” e suaves. Como em um jogo de figura e fundo, essas 2 seções retornam, de forma compactada e intensificada em suas expressividades. 

O último Movimento, lento, tem um caráter de abandono, construído por linhas melódicas mais longas e de perfil andarilho nas cordas, comentadas por acordes e arpejos ao piano. De acordo com o compositor, a peça se encerra com “uma atmosfera de introspecção e luminosidade contida”.