Recital de Piano

28.11 – 20h

casa da música sônia cabral
R. São Gonçalo – Centro, Vitória – ES

Recital de Piano

Abertura
Willian Lizardo, piano

C.P.E. Bach
Klavierstück für die rechte oder linke Hand allein, H.241

György Kurtág
Játékok, Perpetuum mobile

 


 

Lidia Bazarian, piano

Clara Schumann
Romance Op. 21, nº 1, Andante

Franz Liszt
La lugubre gondola II

Marisa Rezende
Miragem

Ludwig van Beethoven
Sonata nº 31, Op. 110, em Lá b M

Lidia Bazarian
Afetos

J. S. Bach
Prelúdio e Fuga em Dó M, Cravo bem temperado I

 


 

O piano poderia contar, sozinho, a história da música erudita ocidental a partir do século XVIII. Desde a invenção do gravicembalo col piano e forte, feita por Cristofori na 1ª década de 1700, o repertório dedicado ao teclado – em especial ao piano – abrange quase todos os gêneros, estilos e poéticas já criados. Suas transformações técnico-mecânicas e timbrísticas, que continuam ainda hoje em crescimento, atestam sua importância como fonte de inspiração e veículo de ideias e pesquisas estéticas. 

Carl P. E. Bach (1714-1788) inicia o programa, por seu pioneirismo na escrita para o pianoforte, impulsionando o desenvolvimento de uma nova sensibilidade e de pensamento musicais.  Uma giga, constituída por uma única linha com motivos de arpejos e valores de duração iguais, abre a acústica do teatro para a sonoridade do piano, como que nos preparando para usufruir as transformações que seu timbre originário sofrerá.

György Kurtág, dois séculos depois, explora outros aspectos do instrumento. De um lado, o mundo das ressonâncias livres e, de outro, o relacionamento entre o corpo (e a alma) do performer com o piano – ambos profetizados por Beethoven, assumidos por Liszt e explicitados por Resende e Bazarian. Seu Perpetuum mobile, parte da coletânea Jogos (Játékok), apresenta-nos um pianismo em que ondas de glissandi, livres no tempo, crescem e decrescem em tamanho, velocidade e em dinâmica, resultando, em termos visuais, em um verdadeiro bailado de mãos e braços do/a pianista. 

Os Três Romances op. 21, da compositora, pedagoga e pianista Clara Wieck Schumann, foram dedicados a Brahms, em 1853, e fundem a sensibilidade romântica, que busca sonoridades individualizadas e singulares, com a tradição e a clareza formais clássicas. Exímia intérprete, o domínio das potencialidades expressivas do piano se evidencia neste Romance nº 1.  Com sua escrita precisa e refinada realça articulações, dinâmicas, fraseados, harmonias com acordes de diferentes densidades e texturas que, combinados com as regiões de altura e com a pedalização, abrem o instrumento para uma miríade infinita de sonoridades. A forma em arco A-B-A’ traz, na seção intermediária (B), o contraste: mais movida e eloquente, é composta por 3 camadas com diferentes figurações que reaparecerão, na seção final (A’), como uma síntese entre intimidade e exaltação.  

Liszt, que admirava o pianismo de Clara Schumann a ponto de haver-lhe dedicado seus Estudos de Paganini, compôs La lúgubre gondola em torno de 1885. Esta peça, que poderia ser considerada, avant la lettre, sem tonalidade, desenvolve-se em meio a um intenso cromatismo, com linhas e harmonias vagantes que não cadenciam e nos deixam sem pontos de repouso em qualquer centro tonal. Com uma métrica inaudível e pausas imprevisíveis, a movimentação rítmica e o contorno melódico descrevem uma barcarola veneziana fúnebre, melancólica e sombria que, como nossa escuta, parece estar sempre à deriva. O virtuosismo, característico da poética pianística de Liszt exige, aqui, o controle absoluto dos diferentes pesos e luminosidades de cada nota. 

As peças de Marisa Resende e de Lidia Bazarian aproximam-se pela concepção que ambas têm do piano como totalidade sonante em sua interação com o corpo do/a intérprete. Mais do que uma extensão de seus dedos ao teclado, os braços, o tronco e a cabeça do/a pianista tornam-se partes integrantes do mecanismo de produção do som e de suas resultantes acústicas. Como em uma coreografia, as movimentações do/a intérprete pertencem à música, tal como o bailado das mãos do Perpetuum mobile.

Resende desenvolve em Miragem (2009) um contraponto de faixas sonoras que ora se superpõem e se interpenetram, ora dialogam complementarmente. Uma das camadas, com alturas definidas e vindas do teclado, é composta por trinados, notas repetidas, motivos acórdicos e segmentos de intervalos. A outra, com sons menos definidos, vem das cordas percutidas e/ou raspadas com uma baqueta cujas ressonâncias se fundem aos ruídos gerados pela ação direta nas cordas. O jogo entre fusão e diferenciação dos elementos se desenvolve discreta e silenciosamente, convidando-nos a adentrar o mundo das filigranas do som e de suas micro movimentações

Em Afetos (2020), Bazarian intensifica a presença do corpo do/a pianista. Além dos gestos que bailam com e na produção do som, a voz é um elo, ao mesmo tempo material e imaterial, fundindo sons, visões e materialidades. Glissandi vocais clamam pelas reverberações das cordas, e ações realizadas pelas mãos, nas cordas ou no teclado ou, ainda, com um tubo de metal, liberam nuvens de ressonâncias que plasmam formas que se constroem e se dissolvem espontânea e incessantemente. Ao final, um glissando mudo ao teclado e um suspiro conduzem-nos ao silêncio.

Esta penúltima Sonata de Beethoven, composta em 1821, explora a potência de um piano mais robusto, com seis oitavas e meia de extensão, e solicita uma atividade corporal mais participativa do intérprete na construção de seus timbres e sonoridades. Ela tem seu centro de gravidade deslocado para o 3º movimento, o mais longo e, formalmente, o mais intrigante. Depois de ouvirmos o 1º movimento se desenvolver com certo equilíbrio entre passagens líricas e secções mais dramáticas, em uma estrutura ampliada de forma sonata, o 2º movimento também não causa nenhum desconforto: um Scherzo com Trio confirma seu design tripartido (A-B-A), com a repetição do scherzo para fechar o percurso formal. O desafio em compreender, auditivamente, o 3º movimento está no relacionamento de centros tonais distantes, na abundância de mudanças de tempo e pelo encadeamento de seções, aparentemente, díspares, que trazem a dimensão vocal para o âmbito instrumental: após um recitativo, alternam-se 2 ariosos e 2 fugas (a 2ª, com o tema espelhado), e mais uma conclusão homofônica. A fluidez teleológica das narrativas clássicas foi, com Beethoven, soterrada pelo impacto que um discurso com rupturas internas tem na forma de ouvirmos e de pensarmos a música.  Seu último Quarteto de Cordas, op. 135, nº 16, revela sua consciência e sua angústia a esse respeito. Nas indicações de andamento do 4º movimento, ele escreve: A difícil decisão. Grave, ma non troppo tratto (Tem de ser? Fá menor) – Allegro (Tem de ser! Fá maior).

J. S. Bach, o mestre que soa subterrânea ou explicitamente em todo o repertório ocidental erudito, finaliza nosso concerto, congregando, nesta emblemática peça, todos os teclados: do clavicórdio aos teclados com interface MIDI, passando pelo órgão, pelo cravo e pelo pianoforte, entre outros. Na “singela” tonalidade de Dó maior, arpejos contínuos, com notas de mesmo valor de duração no ataque, edificam um Prelúdio atemático que flui sem cortes formais. A Fuga a 4 vozes, um dos maiores monumentos do pensamento polifônico já criados, tem seu tema, cujo início com graus conjuntos contrasta com os arpejos do Prelúdio, presente em todos os compassos, com exceção dos 2 últimos, na cadência final.  No total, são 24 aparições do tema, grande parte delas stretto (entradas mais próximas de tema que resultam em sua sobreposição), prenunciando os 24 prelúdios e fugas que compõem cada um dos volumes de O cravo/teclado bem temperado.

Yara Caznok