21.11 – 20h
casa da música sônia cabral
R. São Gonçalo – Centro, Vitória – ES
Abertura
Willian Lizardo, piano
Beethoven
Variações Diabelli Op. 120: Tema e Variação 1
Cacilda Borges Barbosa
Estudos Brasileiros – nº 1
Duo flauta e violão
Danilo Klem, flauta
Belquior Guerrero, violão
Jocy de Oliveira – BF 16
Flauta solo
Anton Diabelli
Beethovens beliebtesten Werken
Heitor Villa-Lobos
Distribuição de Flores
Ricardo Tacuchian
Evocação a Lorenzo Fernandes
Leo Brower
La espiral eterna
Gabriela Ortiz
De Ida y Vuelta
Alexandre Eisenberg
Arquichorinho
A abertura desta noite traz questões que acompanharão nosso percurso neste concerto. Criadores/as, intérpretes e espectadores/as, somos todos ouvintes da história e do futuro, e contamos com nossa memória e imaginação coletivas e/ou pessoais para nos situarmos no mundo e nele interferirmos.
Beethoven, a partir de Diabelli, desafia-nos com a transformação de uma valsa – emblema da cultura vienense da época – em uma marcha. Barbosa nos instiga a transpor para o piano a memória afetiva que temos pela flauta e pelo violão, com texturas que aludem às escritas idiomáticas desses instrumentos.
Se criadores/as exercem sua liberdade em transcrições, citações, paráfrases, colagens e arranjos, até que ponto poderia o/a ouvinte recriar e/ou cocriar uma obra? A maleabilidade da escuta criativa teria um limite?
Anton Diabelli (1781-1858) compôs um pot-pourri com excertos de obras de Beethoven que ele julgou serem as preferidas do público, trazendo as potentes sonoridades sinfônica e camerística para a intimidade da flauta e do violão. São temas e seções extraídos das Sinfonias nºs 2 e 4, da Sonata Primavera para violino e piano e do Trio op. 1, nº 3, organizados de forma inusitada. Em peças dessa natureza, nossa escuta contenta-se apenas em identificar o que já conhece, desafia-se a encontrar outros diálogos com materiais deslocados de seu habitat ou, ainda, (re)cria, perceptivamente, uma nova obra?
Duas peças compostas no mesmo ano – 1997 – trazem mais dados para esse debate. Ricardo Tacuchian (1939) faz uma homenagem ao centenário de nascimento de Lorenzo Fernández, compositor cuja defesa de uma música nacional muito contribuiu para os debates modernistas daquela primeira metade do século XX. Evocação… oferece-nos a experiência da presença de Fernandes, por meio da brasilidade do violão e flauta e, simultaneamente, sua ausência, por sua escrita temático-harmônica, aparentemente, livre, que parece afastar-se do ideário nacionalista defendido pelo homenageado. Entremeados, no entanto, às camadas motívicas cromáticas e não tonais, pairam fragmentos de melodias e de gestos sincopados que nos trazem, como memória longínqua, um repertório de modinhas ou serestas, mantendo vivo e atualizando o grande debate que não quer calar, a respeito de tradição e vanguarda.
Alexandre Eisenberg atendeu ao pedido da Associação Brasileira de Flautistas (ABRAF) para que compusesse uma peça que realçasse a personalidade da música brasileira para flauta, para ser a obra de confronto do 2º Concurso Nacional de Flauta, em 1997. Em seu Arquichorinho, os ritmos sincopados em andamento vivo, os perfis melódico-motívicos, a harmonia, razoavelmente estável, e o design formal do chorinho, com seu típico refrão, permanecem como estruturas reconhecíveis, ainda que ampliadas. Altamente virtuosística para os dois instrumentos, as frequentes mudanças de compasso provocam um fluxo em que se percebe o pulso, mas não a métrica (binária? ternária?), dando ao discurso um caráter de improvisação. Diferentes tamanhos de frase e de motivos temáticos em semicolcheias que escorrem sem cessar, em articulações de staccato e legato que lhe dão mais brilho, a flauta é secundada por acordes, arpejos e linhas cromáticas do violão. Efeitos timbrísticos de técnica estendida e gestos inesperados trazem o humor leve e feliz do chorinho.
Villa-Lobos, em 1932, escreveu uma música que, provavelmente, incomodou ouvintes não familiarizados com suas ideias modernistas. Uma tensão é trazida pelo título – Distribuição de flores –, que sugere uma canção sentimental, mas cujo discurso musical dela se afasta. Após uma breve introdução ao violão, que apresenta a ideia germinal da peça – um motivo melancólico que se repete 3 vezes –, as 5 seções se alternam (ABABA), sem desenvolvimentos teleológicos: na 1ª (A), a flauta faz variações do motivo principal, sobre acordes obstinados do violão e, na 2ª (B), mais enérgica, a sonoridade percussiva do violão impulsiona a flauta a figurações mais amplas.
Na peça da mexicana Gabriela Ortiz, a flauta e o violão são explorados em sua dimensão virtuosística, como instrumentos de alta performance técnico-expressiva. Nos dois movimentos selecionados para este concerto, as figurações não cessam de se transformar, tanto no movimento mais calmo, com arabescos em timbres suaves e refinados, como no último que, rítmico e dançante, traz imitações persistentes de gestos ascendentes, ampliando a expressividade da flauta e do violão contemporâneos.
Os solos nos lançam em uma temporalidade que poderia ser descrita como “o antes e o depois de tudo”. Jocy e Brower oferecem-nos a vivência de familiaridade e de estranhamento em diferentes graus, na qual surgem as indagações: o que buscar na memória para conversar com aquilo que, justamente, a põe em suspenso? Poderiam tempos e espaços, nos quais a memória se construiu, serem dispensados?
A compositora e pianista Jocy de Oliveira (1936), uma das pioneiras, no Brasil, na criação de obras multimídias e de poéticas mistas (que unem sonoridades acústicas e eletroacústicas), compôs esta peça – originalmente para flauta e recursos eletroacústicos – em 2016. Sem nenhuma indicação de compasso e com valores de duração aproximados, For flute exige que o intérprete seja um cocriador de uma música que delineia e sugere inúmeros percursos diferentes. O instrumento é desdobrado, por meio de técnicas estendidas, em timbres que o afastam de sua sonoridade tradicional, aproximando-se, em determinadas passagens, de uma flauta de bambu – com o ar e a respiração do performer muito audíveis – ou de um apito, com ataques fortes, curtos e percussivos. O ruído do mecanismo das chaves, os microtons e o efeito de “Frrrr” do frulatto, ao lado de notas com altura definida compõem uma miríade de sonoridades que amplia ao infinito nossa maneira de estar com e no mundo da música.
Nome de primeira grandeza do universo violonístico contemporâneo, o cubano Leo Brower (1939) escreveu La espiral eterna em 1971. Originalmente pensada, como a peça de Jocy, para meios eletroacústicos, aqui também encontramos uma escritura que solicita um virtuosismo técnico-conceitual do intérprete, ao lado de suas capacidades de improvisação. Com um título quase autoexplicativo, que nos conduz a uma sensação de rotação em forma de espiral, a peça se articula em 4 momentos distintos.
Tudo começa com a repetição de uma célula, composta por 3 notas de alturas muito próximas – ponto focal –, que se expande e se contrai no tamanho, não progressivamente. Após atingir a quantidade de 13 notas, uma única nota, seguida de uma pausa, encerra esse momento. Na 2ª seção, há o acréscimo de uma camada de notas soltas, como se elas tivessem se desprendido do núcleo em movimento, abrindo um espaço de ressonâncias. O ponto central da peça é a 3ª seção, a que mais se diferencia das demais e, conforme o próprio Brower revela, passamos do som puro ao ruído, com a exploração de todo o registro do instrumento. A síntese de sonoridades e movimentações vem na última parte, cujas figurações finais nos remetem ao início da peça, convidando-nos a recomeçar nova viagem pelas espirais infinitas da música.
Yara Caznok