Recital canto e piano

21.11 – 20h

casa da música sônia cabral
R. São Gonçalo – Centro, Vitória – ES

Recital canto e piano

Abertura
Willian Lizardo, piano

J. S. Bach
Melodia Coral Ich rufe zu dir, Herr Jesu Christ – a 4 vozes, Movimento V da Cantata homônima, BWV 177

J. S. Bach / F. Busoni
Prelúdio Coral BWV 639

 


 

Duo voz e piano

Denise de Freitas, mezzo-soprano
Fabio Bezuti, piano

Henrique de Curitiba
 I – Cantar
 VI – Viagem infinita

Heitor Villa-Lobos
Canção de Cristal

Francesca Caccini
Chi desia di saper

Mel Bonis
Songe 

Tradicional
Deep River (a cappella)

Florence Price
Out of the South blew a soft sweet wind

Maiztegui/Lorca
Canzón de cuna para Rosalía de Castro, morta 

Berlioz
Nuits d’été. n°6 de L’île inconnue 

Schumann
Kennst du das Land 

Kurt Weill
Yukali 

Guerra-Peixe
Vou-me embora para Pasárgada

Altino Pimenta
O uirapuru e o violão

 


 

No início é a voz, não é o verbo: é a respiração que se torna som e presentifica a vida. Cientes disso, compositores/as manifestam, muitas vezes, o desejo de que a música instrumental se aproxime do canto: sotto voce, cantabile e arioso, entre outras, são indicações que apontam para um ideal de intimidade com a gênese do som que só a voz é capaz de atingir. 

 As duas versões do hino luterano do século XVI, Eu clamo a ti, Senhor Jesus Cristo, que abrem este concerto, propõem um caminho de “desmaterialização” semântica de um texto. A primeira versão foi feita por Bach, para ser cantada pelo coro e, como oração, as vozes – aqui, pressupostas – cantam silabicamente. A versão de Busoni é a transcrição de um prelúdio coral para órgão, composto também por Bach e, como peça instrumental expande dimensões de sentido que a palavra não alcança, mas cuja transcendência já estava pressentida pelo texto.

Nas canções do programa, o piano não é apenas um acompanhador – ele instaura um ambiente no qual voz e instrumento, reforçando-se mutuamente, permutam seus papéis e se fundem: são música e palavra conjuntamente. Essa interação será ouvida em todo o repertório, e o contraste entre as peças iniciais, de Henrique de Curitiba e de Villa-Lobos, agudizará nossa percepção para essa qualidade especial de relacionamento. 

Francesca Caccini e Mel Bonis nos trazem duas visões diferentes sobre o amor. Caccini, em Chi desia di saper (1618), descreve-o como ardor, dor, medo e fúria, em 4 estrofes com versos cujas rimas, dispostas de forma espelhada – ABCCCBA – são realçadas pela repetição de 4 notas: si b-lá-sol-fá, para A, e sol-lá-fá#-sol, para B. Em um canto majoritariamente silábico, a expressão dos sentimentos ganha vida com ornamentos e pequenos vocalizes sobre as palavras que os definem. Mel Bonis (1858-1937), com uma poética romântica crepuscular de início de século XX, apresenta o amor como redenção, cuja realização acontecerá em um lugar distante e indefinido, sugerido pela fluidez e leveza das linhas do canto e pelos desenhos arpejados e intensidades suaves do piano. São, também, 4 estrofes com rimas espelhadas (ABBA), que se articulam, musicalmente, em 2 partes: estrofes 1 e 2, e estrofes 3 e 4. 

Deep River é um spiritual afro norte-americano anônimo, uma canção-oração que carrega a história de resistência ao cativeiro dos negros nos EUA, de resiliência e de fé na liberdade que um dia virá. Inicialmente introspectiva e com linhas descendentes, que representam tanto a profundidade do rio quanto a tristeza, o prenúncio da esperança é desenhado com um salto de oitava ascendente, na palavra over. Na 2ª seção, mais movida ritmicamente, e em uma região mais aguda e brilhante da voz, a chegada à nota mais alta da canção, na palavra promised, soa como um grito de libertação.    

A poeta galega Rosalía de Castro é homenageada por Garcia Lorca, em um poema cujo título explicita a dualidade “vida e morte”, sobrepondo-as nas imagens do berço e do túmulo. Lorca justapõe a peregrinação a Santiago de Compostela à sua visita ao túmulo de Rosalía, pedindo-lhe que a força de sua arte sirva como guia espiritual para uma nova vida. A postura combativa de Lorca contra o franquismo, que o assassinou em 1936, está presente na música do compositor argentino Izidro Maiztegui (1905-1996). Mantendo o embalo rítmico dos acalantos, o compositor cria, ao mesmo tempo, um chamado à ação e um lamento. No início, piano e voz têm o caráter incisivo de uma conclamação que, aos poucos, vai se arrefecendo até se transformar em um recitativo, no qual a palavra dor é iluminada com um pungente vocalize descendente. Com a repetição da 1ª estrofe, a força da esperança finaliza a canção.  

  As canções de Price, Berlioz, Schumann, Weill e Guerra-Peixe, apesar de muito distintas, compartilham de um tema comum: o anseio de evasão dos limites da realidade, em espaços e tempos da imaginação e do sonho, em busca da felicidade. 

Com Florence Price (1887-1953), a natureza e a suavidade do vento do sul que, no último verso se transfigura em canção, fazem referência à grande migração forçada de milhões de afro norte-americanos das zonas rurais do Sul para o Norte, entre 1915 e 1930. Esta breve canção, escrita em 1943, tem uma melodia, com tendência ascendente em compasso ternário, e um andamento que exprimem a delicadeza de sentimentos identificados à natureza. Estes são descritos musicalmente pela voz – um vocalize para o vento com a vogal U e um salto ascendente na palavra joy (alegria) – e pelo piano que, com ornamentos e escala descendente na região aguda, emula as águas do riacho. 

A ilha desconhecida foi composta a partir de Barcarola, do poeta Théophile Gautier, contemporâneo de Hector Berlioz. Ao contrário do espírito calmo e balouçante que caracteriza as peças do gênero barcarola do século XIX, ouve-se o desassossegado movimento de águas, ondas e ventos, descritos pela voz e pelo piano. Essa natureza turbulenta sugere a impossibilidade de realização do desejo e a ansiedade de uma jovem que, em um diálogo com um marinheiro, diz que seu desejo é ir para um lugar onde o amor possa ser eterno. 

A perfeita unidade texto-música, que caracteriza o gênero Lied romântico alemão, pode ser ouvida na canção de Schumann. As 3 estrofes do poema de Goethe, Mignon, têm o mesmo tratamento musical, retratando a transformação emocional da personagem. A nostalgia inicial, quando ela indaga “Conheces a terra…”, é sugerida por arpejos descendentes ao piano e por discretas linhas melódicas vocais. Ao descrever as belezas daquele lugar (a Itália idealizada por Goethe), Mignon se exalta e o piano adere a uma textura acórdica cada vez mais densa para sustentar o canto que, mais intenso, expressa sua agitação. Nos versos finais, saltos ascendentes da voz traduzem sua ansiedade máxima quando declara “é para lá (Dahin!) que eu quero ir”. 

Youkali foi composta por Kurt Weill em 1934, durante seu exílio na França, para sua ópera Marie Galante. O caráter melancólico da canção, um tango-habanera, descreve uma ilha imaginária onde uma prostituta crê que seus sonhos de redenção e de felicidade serão realizados. Por simbolizar algo inatingível, Youkali tornou-se o hino secreto da Resistência durante a 2º Guerra Mundial. 

As figurações vocais destacam o nome Youkali por meio de potentes saltos que vão ascendendo e aumentando de tamanho, como um grito a ser ouvido de longe, e contrastam com as menções à terra sonhada, entoada com pequenos intervalos. A conclusão de que tudo é ilusão tem motivos descendentes que representam a tristeza da desilusão. 

Com Guerra-Peixe, a Pasárgada de Manoel Bandeira se situa em solo brasileiro, com ritmos característicos e harmonias que passeiam pelo modalismo.  O refúgio imaginário de Bandeira une desejos factíveis – andar de bicicleta, tomar banho de mar – a fantasias eróticas de poder que devem ser compreendidas no contexto dos anos 1930.

O compositor realça os estados de humor do poema – voluntarioso, altivo, nostálgico ou desolado – com variações de andamentos, de energias e lassidões rítmicas, de luminosidade de acordes e de regiões agudas ou graves da voz e do piano. Este tem um papel crucial na expressão diferenciada de cada momento do poema, com texturas, densidades e intensidades que incluem o silêncio.

Como epílogo, a voz se liberta das palavras para comunicar sua expressividade originária, igualada por Altino Pimenta àquela do Uirapuru, o pássaro cujo canto é tão belo e intenso que cala todos os outros habitantes da floresta.

Yara Caznok