15.11 – 20h
casa da música sônia cabral
R. São Gonçalo – Centro, Vitória – ES
Abertura
Willian Lizardo, piano
Dinorá de Carvalho
Suite para piano – II, Marcha; IV, Polka
D. Scarlatti
Fuga em sol menor, K. 30 “Fuga do gato”
Trio de madeiras
Nathália Maria, oboé
Danilo Oliveira, clarinete
Deyvisson Vasconcelos, fagote
Kaija Saariaho
Blütenstaub (Pólen) 1º Mov. de Duft, para clarinete solo
Jacques Ibert
Cinq pièces en trio
Allegro vivo
Andantino
Allegro assai
Andante
Allegro quasi marziale
Jenni Brandon
Found Objects – On the Beach Mov. 4 e 6
Black Feather on the Sand
Seashells
Rodrigo Lima
Parábola – Estudo para oboé solo
Lorenzo Fernandez
Três Invenções Seresteiras
I. Allegretto (para H. Villa-Lobos)
II. Lentamente (para Luiz Heitor)
III. Allegro scherzoso (para Renato Almeida)
Aylton Escobar
Cantares para Airton Barbosa
Charles Huguenin
Trio para Oboé, Clarinete e Fagote No.1, Op.30
I.Marcietta
II.Sicilienne
III.Menuet
IV.Petite Gavotte
José Siqueira
Três Invenções para oboé, clarineta e fagote
Os diversos espaços onde a música acontece implicam em diferentes vivências do corpo que ouve e que se envolve nos ambientes acústicos. O habitat de marchas, serestas e danças é a rua, o salão e o pátio. A polifonia, por outro lado, pede um espaço contido para a compreensão de sua urdidura. A fusão de gêneros e texturas nos instalam em espaços imaginários híbridos, e é para experimentarmos essa sensação – que será amplificada com o Trio – que ouviremos, na abertura, uma marcha, uma polka e uma fuga a 4 vozes.
Um conjunto de instrumentos melódicos de madeira é propício à escrita contrapontística, pois suas singularidades e, ao mesmo tempo, sua proximidade timbrística, potencializam tanto a autonomia quanto a complementaridade das linhas melódicas sobrepostas. Confirmam esse fato as peças de Lorenzo Fernández e de José Siqueira, denominadas Invenções, em homenagem ao mestre da polifonia, J. S. Bach.
Fernández (1897–1948), com um forte sotaque brasileiro, traz a polifonia a 2 vozes da rua, em diálogos jocosos que se entrelaçam e soam, por vezes, como que improvisados. A sinuosidade melódica das canções seresteiras, familiares aos nossos ouvidos, é explorada pelos cantábiles do clarinete e do fagote e pelo perfil rítmico sincopado. As Invenções foram dedicadas, respectivamente, a Villa-Lobos, Luiz Heitor Correa de Azevedo e Renato Almeida, importantes personalidades envolvidas nas discussões sobre raízes, identidade, brasilidade e modernidade, ocorridas na 1ª metade do século XX.
Na 1ª Invenção, um contraponto livre e sincopado explora, majoritariamente no fagote, o recurso da pseudopolifonia, ou seja, o instrumento tem figurações em 2 camadas – uma aguda e uma grave – simulando a presença de mais um instrumento no conjunto. Um baixo de violão, quem sabe?
Imitações mais estritas entre as 2 vozes, na 2ª Invenção, alternam-se com passagens que lembram a sonoridade da música caipira (terças paralelas), em um fluxo mais livre, graças às mudanças de compassos e às quiálteras.
Para fechar o ciclo com brilho e energia, na 3ª Invenção – Allegro scherzoso – clarinete e fagote estão quase o tempo todo juntos (técnica contrapontística de nota contra nota) – em uma escrita mais livre e virtuosística.
Siqueira escreveu suas Três Invenções nas décadas de 1950-60, momento em que a música brasileira procurava confirmar seus diálogos com a modernidade europeia. Com um idioma harmônico mais livre, sua peça explora imitações, retrogradações e espelhamentos, procedimentos típicos de um contraponto mais austero.
Mantendo a tradição barroca, nas Invenções 1 e 2, o compositor apresenta o timbre de cada instrumento, seja em ordem ascendente (do grave para o agudo) ou descendente, à maneira de uma exposição de fugato a 3 vozes, facilitando a discriminação dos temas principais. A 2ª Invenção tem um caráter mais austero e solene graças a seu andamento lento, a um intenso cromatismo e a seu tema inicial, de perfil enigmático e um tanto melancólico.
Na Invenção 3, um grande contraste é ouvido já na introdução, que anuncia sua característica principal: abundantes movimentações contrárias simultâneas em andamento rápido.
A norte-americana Jenni Brandon (1977) inspirou-se na natureza para tecer suas linhas contrapontísticas, sugerindo uma escuta ao ar livre, repleta de sugestões visuais e táteis. O título da Suite – Found Objects – On the Beach – sugere a poética do objet trouvé (objeto encontrado), praticada por dadaístas e surrealistas, na qual qualquer elemento cotidiano pode ganhar um significado estético.
Em Pena negra sobre a areia, linhas melódicas desenham fluidos arabescos sem direção certa, evocando diferentes apreensões sinestésicas – cor, peso, textura, dimensão, fluidez, e sensações de infinitude provocadas pela areia e pelo ar. Depois da apresentação das individualidades expressivas de cada instrumento, combinações contrapontísticas desenvolvem-se em fusões timbrísticas.
Conchas tem um motivo musical identificável que, reiterado em imitações ou simultaneidades, é variado constantemente. O caráter de uma valsa leve poderia sugerir-nos o movimento contínuo e incerto das ondas que joga as conchas para lá e para cá…
Jacques Ibert compôs as Cinq pièces en trio em 1935, nas quais as qualidades concertantes dos sopros são realçadas. Sem renunciar ao contraponto, ele investe, também, em texturas acórdicas e pequenos solos, alternando “humores”: o extrovertido e divertido (nºs 1 e 5), o melancólico e meditativo (nºs 2 e 4), e a sonoridade pastoral (nº 3), lembrando a função do sopro como instrumento apascentador.
O Trio nº 1, do suíço Charles Huguenin, composto na libertária década de 1910, é uma continuidade, em termos de equilíbrio formal, textural, e de idioma temático-harmônico, dos modelos clássicos desenvolvidos, especialmente, por Mozart. O uso tradicional dos registros destina ao fagote, majoritariamente, a base harmônica, mas também uma dimensão melódica (na Marcietta, por exemplo), com linhas cantáveis no registro médio-grave. Oboé e clarinete são responsáveis pelo brilho e pela agilidade dos diálogos contrapontísticos e dos pequenos solos.
As três peças-solo inserem-se no programa como intermezzi espaço-temporais, arremessando nossa percepção para um mundo infinito de sonoridades.
A finlandesa Kaija Saariaho (1952-2023) engendra, a partir de uma bordadura expandida – as 2 primeiras notas que soam como um vibrato – um espaço ilimitado no qual motivos e linhas zunem como insetos no ar. Ao explorar as dinâmicas, regiões e efeitos idiomáticos do clarinete – advindos, também, da técnica estendida –, surgem experiências sinestésicas, conforme sugerido pelo título Pólen.
Escrita em 2022, Parábola, para oboé solo, foi inspirada no quadro A grande cidade (1964), do artista cearense Antônio Bandeira (1922-1967). A poética multissensorial de Rodrigo Lima (1976) convida-nos, tal como Bandeira em sua tela, a experimentarmos direções: impulsos de ascendência e descendência, imprevisíveis quanto a seus limites, por meio de segmentos escalares. Motivos rítmico-intervalares, trêmolos, notas repetidas e ornamentos, entre outros, são seus contentores, e um detalhamento muito preciso de indicações de dinâmica provoca a sensação de espacialidade e de profundidade que emoldura e dá relevo a linhas, pontos e traços sonoros.
Aylton Escobar (1943), nome incontornável da composição no Brasil, escreveu, em 1983, Cantares, em homenagem ao fagotista Airton Barbosa. Uma semente – as 2 notas iniciais (uma apogiatura descendente, figura característica da música vocal) – cresce e decresce, obsessiva e imprevisivelmente, e se espraia em diferentes configurações, direções, regiões de altura, articulações, ritmos e tamanhos, chegando aos grandes saltos e acordes que tipificam a música instrumental. Em momentos intensos, a aproximação entre a voz humana e o timbre do fagote se explicita, por meio de “rudes lirismos e gritos trágicos”, conforme palavras do compositor. O aparente oximoro de seu título revela um dos fundamentos poéticos da peça: a transformação e a oscilação de uma linha melódica que rompe as fronteiras entre ser voz e ser instrumento.
Yara Caznok